Mentiras consensuais
Existem pessoas felizes e
pessoas infelizes, e todas elas se questionam. Umas bebem champanha e outras
água da torneira, e se fazem as mesmas indagações. Se existe uma coisa que nos
unifica são as dúvidas que trazemos dentro. São pequenas angústias que se
manifestam silenciosamente, angústias que não gritam, ou gritam sumarizadas em
úlceras, insônias e depressões.
Angústias diante das mentiras consensuais. O que
são mentiras consensuais? São aquelas que todo mundo topou passar adiante como
se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que
automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom
andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e
vulcânico que há, tornou-se a maior vítima deste consenso.
Mentiras consensuais:
o amor não acaba, não se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo, quem ama quer
filhos, quem ama não sente desejo por outro, amor de uma noite só não é amor, o
amor requer vida partilhada, amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural.
Tudo mentira. O amor, como todo sentimento, é livre.
É arredio a frases feitas,
debocha das regras que tentam lhe impor. Esta meia dúzia de coordenadas
instituídas como verdades fazem com que muitas pessoas achem que estejam amando
errado, quando estão simplesmente amando. Amando pessoas mais jovens ou mais
velhas ou do mesmo sexo ou amando pouco ou amando com exagero, amando um homem
casado ou uma mulher bandida ou platonicamente, amando e ganhando, todos eles, a
alcunha de insanos, como se pudéssemos controlar o sentimento.
O amor é dono
dele mesmo, somos apenas seu hospedeiro. Há outros consensos geradores de
angústia: o mito da maternidade, a necessidade de um Deus, a juventude eterna.
Sobem e descem de ônibus milhares de passageiros que parecem iguais entre si,
porém há entre eles os que não gostam de crianças, os que nunca rezaram, os que
estão muito satisfeitos com suas rugas e gorduras, os que não gostam de festas e
viagens, os que odeiam futebol, os que viverão até os cem anos fumando, os que
conversam telepaticamente com extraterrestres, os ermitões, enfim, os
desajustados de um mundo que só oferece um molde.
Todos nós, que estamos quites
com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que
nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós
que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de
acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém. Martha
Medeiros