- Mande entrar a ré! - ordenou o juiz.
O tribunal estava montado. A mulher, com passos tímidos, avançou e
acomodou-se no banco dos réus . O advogado da acusação estava
preparado; as perguntas, direcionadas à ré, fizeram-se ouvir na sala da
justiça:
- Qual o seu nome?
- Caridade - respondeu a interpelada.
- A senhora sabe que está sendo acusada de alimentar a ociosidade e a
preguiça dos indigentes da nossa cidade criando obstáculos para que a
municipalidade os eduque e os instrua nos conceitos de cidadania?
- Sim.
- A senhora reconhece que, com sua ação, dita caridosa, tem contribuído
para o aumento de indigência sustentada?
- Não.
- Consta dos autos do processo que a senhora, na sua instituição, atende
pessoas de má vida, consideradas pela lei como contraventoras e até
criminosos, e que a senhora não faz distinção entre eles e os cidadãos
de bem. Confirma?
- Sim.
- Consta, ainda, que um cidadão honrado, respeitável membro da nossa
comunidade, tomando de boa fé a procurou para pedir orientação sobre um
processo justo que deveria mover contra os herdeiros, de cuja herança
também tinha por direito participar, e a senhora tentou dissuadi-lo dessa
ação, contrariando a Constituição do nosso país que prevê os
direitos do indivíduo. A senhora confirma?
- Sim.
- Meritíssimo, nada mais tenho a inquirir à acusada - declarou o
porta-voz da acusação.
Nesse momento o juiz convoca o advogado de defesa. Prontamente ele se
coloca diante da acusada e lhe indaga:
- A senhora tem na memória há quanto tempo se dedica a socorrer as
necessidades humanas?
- Não.
Voltando-se para os jurados, o causídico inicia a defesa:
- Sabemos, e isto é conhecido de todos nesta cidade e nas cidades
vizinhas, que a acusada, com seu carinho e a sua dedicação, tem
convertido almas para o bem, principalmente aqueles que a procuraram na
condição de contraventores e criminosos, e que hoje são pessoas
trabalhadoras e honradas
Poderíamos citar aqui uma centena delas. Devo
acrescentar ainda que, para municipalidade instruir nossos irmãos
indigentes e reintegrá-los à sociedade, é necessário que eles estejam
vivos! Não fosse o trabalho de amor, socorrendo com remédios, alimentos
e roupas a esses infelizes, quantos não teriam sucumbido de fome e de
frio? Não fosse ainda o calor humano que empresta a nossa irmã aqui
acusada a esses irmãos, quantos, no auge do desespero, não teriam
praticado o suicídio na fuga desesperada do sofrimento?
- Quanto ao nobre cidadão que a procurou de boa fé, e cuja historia
consta dos autos, saibam os senhores que, depois de gastar suas economias
em um processo do qual não tinha direito constituído, é hoje um dos
indigentes que sobrevivem da ação caridosa da nossa irmã acusada.
Para surpresa de todos, complementou sua defesa fazendo uma inspirada
exaltação. Com os braços estendidos na direção do banco dos réus,
afirmou:
- Senhora Caridade! Rainha da Luz! Procurei por você entre os ricos que
distribuem as sobras, mas fui encontrá-la entre os mendigos que repartem
entre si as migalhas que os alimenta e os trapos que os aquecem. Procurei
por você nos grandes templos das religiões do mundo, mas fui encontrá-la
entre o povo, estendendo suas mãos generosas, socorrendo a necessidade
humana, oferecendo, além do pão, o calor da fraternidade e do amor que
reconforta o espírito. Seguindo o seu rastro de luz, pude ver muitas
feridas do corpo e da alma cicatrizando-se ante a ação do seu inigualável
amor.
E hoje você está aqui! Diante do tribunal da insensatez humana
sendo julgada por amar demais seus semelhantes. Sei que as leis que
orientam o seu coração estão além das leis mesquinhas dos homens. Por
isso, peço-lhe, perdoa-nos alma querida e justa, pois os homens ainda não
sabem o que fazem.
Encerrada a defesa, o júri absolveu a acusada por unanimidade.
Bom dia!!!
2699/5
Maktub