"Três Horas"
Era sábado pela manhã e as linhas telefônicas nas casas dos
formandos estavam congestionadas.
Meninas com salão de estética e beleza marcados, rapazes nadando
logo de manhã pra evitar o "stress", a companhia responsável pela
formatura e baile acertando os últimos
detalhes no auditório da Universidade e no Salão Nobre.
Todos estavam ansiosos, preocupados, assustados, cheios de
expectativas. Carros iam e vinham da portaria das faculdades.
O pessoal da decoração dava os últimos toques na arrumação da
mesa do Corpo Docente, a empresa de som ligava cabos enormes em
todos os pontos do auditório, a iluminação colocava as últimas
lâmpadas que faltavam, a floricultura acertava os corredores por
onde as moças e os rapazes iriam descer e o outro por onde iriam
subir.
As camareiras davam os últimos retoques nas lindas togas de
formatura, os fotógrafos montavam o estúdio móvel na porta do
Salão Nobre, a cantina precavia-se de muitos salgadinhos e
refrigerantes, enfim, tudo corria contra o tempo, contra o relógio.
Três da tarde. A cerimônia iria começar às 4, impreterivelmente.
O Prof. Dr. Astrogésilo Pessoa Couto, grande celebridade e Reitor da
Universidade, não se dava ao luxo de começar um minuto atrasado.
Dizia-se que acertava o seu relógio pelo Big-Ben de Londres, até que
inventaram o tal "relógio atômico", que ele fez questão de instalar
no seu computador. Assim, acontecesse o que acontecesse, às 4 horas
a cerimônia iria começar.
Muita gente rica chegando. O estacionamento da faculdade mais
parecia um desfile de moda e revenda de automóveis importados:
BMW, HONDA, DAEWOO, AUDI; etc. Até FERRARI e JAGUAR apareceram!
Madames muito bem vestidas estavam presentes. Havia gente da TV,
cujos filhos estariam se formando.
Mas tinha também um bom grupo de gente simples, humilde, lutadora,
que também tinha filhos se formando ali. Seus trajes demonstravam
que haviam alugado no "Black Tie" mais próximo
do bairro. Não tinham familiaridade com a roupa, com os saltos, com
as gravatas, com os colares. Até ficavam um tanto desconcertadas,
pois queriam fazer bonito e não envergonhar
os filhos.
Quatro horas. Como já dissemos, a empresa responsável pela cerimônia
deu início ao evento. Algo em torno de 700 pessoas presentes.
Também, pudera: 89 formandos, 35 em Letras, 12 em Pedagogia, 30 em
Direito e 12 em Engenharia de Informática. Uma grande festa. Lugares
contados, reservados para duas ou três pessoas de cada formando, e o
restante disputado palmo a palmo pelos presentes do lado de fora ou
em pé nos arredores. Havia um telão para que todos acompanhassem do
lado de fora.
Primeiramente a entrada do Reitor. Palmas efusivas. Então a mesa
diretora e, por fim, o corpo docente, palmas afetuosas. Apresentação
das funções de cada um e tudo o que, de praxe, se costuma fazer numa
cerimônia de formatura e colação de grau. Cantaram o Hino Nacional
Brasileiro com o tradicional CD da Banda da Polícia Militar do
Estado de São Paulo, gravação épica e universal para o Brasil. As
palavras do Paraninfo, do Patrono da Turma, enfim, tudo o que se
costuma haver nessas páginas indeléveis na vida de quem se forma.
No momento da entrada, as torcidas no meio do auditório.
Alguns estavam organizados, com línguas-de-sogra e cornetinhas
(reprimidas pelo Reitor tão logo descobrira).
Outros, mais discretos, levaram faixas, onde se lia: "SONINHA, VALEU
O ESFORÇO - PARABÉNS, DOS SEUS PAIS QUE LHE AMAM", "AÍ, MARCÃO,
VALEU, SEU BABACA! SEUS AMIGOS". "CARLINHOS, PARABÉNS! TE AMO! SUA
NOIVA." Cada um se emocionava do seu jeito. Umas garotas choravam.
Outras coravam. Os rapazes erguiam as mãos como se fosse um gol do
seu time. Outros faziam o "V" da vitória, e um a um foram chegando
com suas togas bem alinhadas e majestosas.
Chegada a hora de passar a palavra ao orador das turmas
(combinaram ter um só orador, pelo tempo despendido na cerimônia e
pela proximidade do horário do baile, que se seguiria dentro de uma
hora), o Julinho, ou melhor, Dr. Júlio Lacerda Loyola Anastácio
(nome de advogado desde nascença), foi aclamado, quase levado nos
braços dos formandos, que estavam do lado direito do auditório, que
tinha formato de teatro.
Sua prédica havia sido impressa para todos acompanharem.
Os formandos sugeriram o que o Julinho teria que falar.
Estava tudo previamente combinado.
- Ilustríssimo Senhor Doutor Professor Astrogésilo Pessoa Couto,
digníssimo Reitor de nossa egrégia Universidade, Senhor Professor
Carlos Marques Lara, digníssimo pró-reitor da área de humanas,
etc....etc...
Num outro trecho as tradicionais palavras:
- Foram árduas as nossas batalhas: cansados do labor diurno, cá
chegávamos, com fome, tanto do pão quanto do saber, e éramos
fartos pelos nossos valorosos Mestres, que tudo davam de si..., etc.
Tudo ia muito bem. Até que Julinho se engasgou, ao dizer uma palavra
que estava além do texto:
- Agora, Senhor Reitor e senhores formandos, preciso dizer algo
pessoal...
Os formandos gelaram.
- Ele vai fazer besteira.
- Julinho, cala a boca, termina logo.
- Ih, cara, sujou. Ele vai embolar tudo.
- Sabia que no final ele iria melar.
Mesmo conhecendo a cara de desaprovação da turma, Julinho continuou,
branco, pálido, engasgado, mas firme, dizendo:
- Senhor Reitor, Corpo Docente, Formandos, Familiares e Amigos:
Preciso confessar algo, para fazer justiça e, ao mesmo tempo,
reconhecer o que é certo. Todas as coisas aqui foram muito
importantes: aulas, colegas, materiais didáticos, a seriedade de
nossa secular instituição, tudo.
Mas há algo que está faltando no meu texto, e não lerei o que vou
dizer, porque o que tenho pra falar vem das letras escritas a ferro,
dentro da minha alma. Devo este dia inesquecível e histórico às 3 da
manhã de cada dia desses 5 anos.
- Três da manhã? pensaram os formandos. Esse cara bebeu.
Ah, Julinho, para de enrolar e desce logo... Ah, se te pego na
saída...
- Nunca desfrutei de amizade com o meu pai.
Na verdade sempre o desprezei. Tanto é assim que ele não está aqui,
entre os meus convidados, porque não pode se locomover e eu não fiz
o menor esforço para trazê-lo. Aqui estão minha mãe e irmã, mas não
meu pai. E ele é responsável pelas três da manhã. Durante 5 anos eu
acordei várias vezes no meio da madrugada, e, não raras vezes, às 3
da manhã. Meu pai, que empregou quase todo o seu parco salário no
meu curso, mesmo sendo por mim ignorado, entrava no meu quarto, com
hercúleo esforço, às vezes caía, mas sempre levantava, e orava
a Deus. Sim, ele me apresentava a Deus.
Tenho marcas no meu cobertor que não foram feitas por doces ou
refrescos que derrubei, nem pontas de cigarro que deixei acesas.
- Deus, como eu amo ao meu filho, fruto de mim mesmo! Deus,
como eu o admiro! Deus, como eu o quero bem!
Deus, faça o que quiser comigo, mas abençoa o meu filho, porque,
depois de Ti, ele é a razão do meu viver! E dá-me o privilégio de
que um dia ele me ouça, que ele me ame também!
Júlio chorava. O Reitor tossia, para disfarçar a emoção, os
formandos estavam com a cabeça baixa, pois sabiam que o Júlio tinha
feito a coisa certa e estavam envergonhados de terem desaprovado sua
atitude no início. O auditório se derretia. E, num ápice de dor e
amor, Júlio gritou:
- Meu pai, como eu queria te dizer EU TE AMO!
De repente a porta do corredor central se abre subitamente, e uma
cadeira de rodas entra, guiada por uma enfermeira, e o pai de Júlio
entra, magrinho, cabelos grisalhos, rosto cansado, voz baixa, mas
grita com toda a força do seu ser:
- Eu sei que você me ama, filho! EU SEMPRE TE AMEI!
Seja feliz, meu filho, seja feliz!!!
Júlio quebra o protocolo e sai correndo da tribuna corredor adentro
e vai abraçar o seu pai, chorando no seu ombro copiosa e
demoradamente.
Todos, unanimemente, chorando e gritando "BRAVO! BRAVO!"
aplaudiam longamente a cena fantástica e novelesca que ora se
fazia viver no mundo real! Foram 5 minutos, os cinco minutos mais
importantes já vividos naquela universidade!
Chamado novamente à tribuna, recebeu o seu grau e diploma. Então
gritou:
- PAI, ISSO É POR VOCÊ! TE AMO!
O pai sorriu, mas já não tinha forças para falar. No seu coração ele
via galardoado todo o seu esforço, o salário minguado dedicado à
faculdade do rapaz, e, principalmente, as três horas de toda
madrugada. Ele estava feliz. Podia morrer tranqüilo. Mas, morrer,
já?
Ele não tinha planos para morrer agora, naquele instante.
Queria desfrutar dessa alegria indizível.
Deus ainda lhe deu alguns anos, os melhores da vida dos dois, do Dr.
Júlio e do seu pai, que se tornaram os melhores amigos. Aliás, Júlio
ficou conhecido na comunidade acadêmica como "Doutor Três Horas".
Que Deus dê aos leitores, que têm pais vivos, a oportunidade de
fazê-lo em vida. Flores no túmulo murcham. Flores no coração
desabrocham.
Para sempre ...
Maktub
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