Desde muito pequena Gláucia mostrava ser uma criança bela e muito
desembaraçada. Os amigos da família costumavam tecer comentários
sobre o seu jeito de ser e a sua beleza, dizendo aos seus pais que
"essa menina ainda vai lhes dar muito trabalho". No colégio,
tanto tirava notas boas, quanto aprontava com colegas, funcionárias
e professores. Não rara a semana em que a sua mãe não recebia
reclamações ou era chamada a comparecer ao SOE (Serviço de
Orientação Escolar).
Já pela quinta, sexta série, nos seus doze anos, Gláucia era
cercada pelos meninos, que admiravam a sua beleza e a sua maneira
alegre de contar piadas, fazer brincadeiras e provocar a administração
da escola. As suas colegas, algumas aderiam aos seus hábitos.
Outras, com inveja, criticavam pelos cantos, a sua maneira
espevitada de ser. Por outro lado, os seus boletins estavam
recheados de notas boas, exceto em comportamento, razão maior do
contato do colégio com os seus pais.
O tempo passava e a beleza de Gláucia aumentava. No segundo grau
continuava a ser a atração dos colegas, quer pelo seu ar moleque,
quer pela sua beleza especial. Quanto às notas, os boletins
continuavam da mesma forma: notas azuis para todas as matérias,
especialmente matemática, física e química, e vermelha para
comportamento. O pessoal já tinha se habituado às suas manias de
aprontar, sempre, de sorte que se algo mudasse, iria causar um
impacto sem precedentes à escola e aos seus amigos. Os seus pais
assistiam a tudo, de certa forma passivamente, sem saber como conter
o seu espírito irrequieto. Porém, movidos pela vaidade dos seus
resultados escolares, dizia para todos que a sua filha ainda seria
alguém muito importante e motivo do maio
Terminado o segundo grau, Gláucia resolveu fazer vestibular para
Engenharia Elétrica. Como era de se esperar, aluna brilhante nas ciências
exatas, foi fácil ser a segunda colocada no concurso. Por incrível
que pareça, por brincadeira ou não, ainda se chateou em ficar em
segundo lugar e dizia, com certo desdém e com um sorriso sarcástico:
- Eu sempre fui a melhor em tudo. Em matemática, física, química,
etc., além de ser a mais bonita e a mais gostosa. Creio que foi
algum velho babão que deve ter corrigido as minhas provas, se é
que não foi uma megera invejosa.
O seu curso ia de vento em popa. O orgulho dos pais era cada vez
maior, até que a jovem resolveu anunciar que tinha arrumado um
emprego para as suas horas vagas e, com isso, ganharia um bom
dinheiro para comprar o seu próprio carro. Os pais, classe média,
condições até tinham de lhe dar um carro semi-novo, para poder
transportá-la até a faculdade e para os pequenos passeios com os
amigos. Entretanto, o que Gláucia queria mesmo era comprar o seu
primeiro carro com o dinheiro ganho pelo seu próprio trabalho,
deixando as economias dos pais para que eles fizessem uma viagem,
planejada fazia tempo.
Dinâmica, cheia de vida, a jovem saía pela manhã cedo para a
faculdade e voltava, no início, por volta das 20 horas. O tempo foi
passando e o seu retorno cada vez mais tarde, a ponto de preocupar
D. Celina, sua mãe, com a sua alimentação e o seu sono. Gláucia
estava sempre alegre e não parecia perder peso ou a alegria. Ao
contrário, mostrava-se feliz com os seus afazeres. Logo comprou o tão
sonhado carro, com um bom som e ar condicionado. Também passou a se
esmerar no vestir, adquirindo roupas da moda, coisa que só fazia
quando do recebimento do décimo-terceiro salário do seu pai,
recebidos em parcelas em junho e dezembro.
Agora pouco se encontrava com os amigos. Até aos sábados e
domingos ela costumava receber ligações telefônicas, aprontava-se
rapidamente e saía, dizendo não saber a hora em que retornaria.
Mas na volta, parecia satisfeita, saciada naquilo em que tinha ido
fazer. Mais um sinal que o seu trabalho era algo muito importante
para ela e que a realizava como profissional e como mulher. De supérfluo
comprou um bom som e um computador totalmente equipado com câmera,
scanner, placa de som e vídeo, placa de comunicação, etc. Tanto
digitava, ninguém sabia o quê, como entrava na Internet ficando
horas esquecida do mundo.
Alguns dos amigos internautas não se contentavam em mandar e-mails
e mensagens e até telefonavam para a sua casa, para trocarem idéias,
em uma conversa que, quando alguém ouvia, nada conseguia entender.
Vizinhos e amigos começaram a fazer conjecturas sobre o
comportamento da moça. De início chegaram a cogitar que ela andava
se drogando, todavia, pela forma como dirigia o carro, pelo seu
jeito agora mais sério, logo descartaram essa hipótese. A verdade
era que ela nunca tinha se dado a qualquer vício, o que ajudava a
derrubar pensamento para o uso de tóxicos.
Como Gláucia continuava cada vez mais bonita, mais elegante e tinha
comprado vários bens de consumo, algumas línguas mais maldosas
começaram a achar que ela tinha um amante. Isso foi tomando vulto e
se propagando pelas bocas das pessoas desocupadas ou, simplesmente
preocupadas com a vida alheia.
Em uma tarde de domingo, perto das 16 horas, a jovem deixou
rapidamente o computador pois estava sendo chamada no telefone da
sala, por um homem que queria falar com ela com urgência. Próximo
ao telefone, assistindo aos programas dominicais de uma rede de
televisão, estavam a sua mãe, o seu pai e um casal de vizinhos:
Dona Mirtes e Seu Geraldo. No diálogo que se seguiu no telefone, Gláucia,
irritada, disse para o seu interlocutor:
- Droga, do jeito que está não dá. Vamos ter que fazer um novo
programa, dessa vez com maior cuidado, mais responsabilidade de
maneira que o resultado seja bom para nós. Passe aqui em casa
dentro de dez minutos que vou me aprontar e iremos para aí juntos.
Dona Mirtes, a vizinha, olhou para o marido Seu Geraldo de forma
assustada e acusadora. Dona Celina, já acostumada com essa ligações
para a filha, sequer percebeu a reação da "amiga".
Alguns instantes e Gláucia saía do quarto muito bem vestida,
perfumada, despedindo-se dos presentes, dizendo:
- Mãe, não sei a hora em que vou chegar. Não precisa me esperar
para o jantar. Farei um lanche por lá mesmo.
Claro que isso foi a gota d'água para Dona Mirtes sair dali
espalhando que a jovem era uma moça de programas. A partir daquele
dia passou a dizer alto e bom som para os demais vizinhos:
- Ela acerta programas por telefone, na frente dos pais e sai
arrumada e perfumada com um sujeito que vem pegar ela em um carrão.
Perguntem ao Geraldo que também viu e ouviu.
Essa notícia se espalhava pelas ruas, pela vizinhança e até na
igreja o padre fazia sermões, dando recados indiretos para a família
da jovem. No início os pais de Gláucia pareciam não entender,
enquanto os demais fieis olhavam penalizados para eles. A coisa se
tornou tão aberrante e tão ostensiva que eles resolveram se
afastar do templo, passando a fazer as suas orações em casa. Aos
poucos, também os amigos foram sumindo e logo se viram sós, sem
saber a razão do fato. Claro que chegaram a pressupor que tudo se
devia ao fato da filha trabalhar sem horários determinados e gostar
de esnobar em suas roupas caras e no seu carrinho particular.
O tempo passava e a família de Gláucia era cada vez mais isolada.
Por outro lado, ela continuava a voltar tarde, sair em carrões e
vestir-se bem. A sua alegria parecia não ter sido afetada e ela nem
sequer percebeu a mudança que estava ocorrendo com os seus pais. Já
não iam à missa. Passeios ao parque nem pensar. Visitas já não
recebiam e tinham medo de ir à casa dos antigos amigos com receio
de como seriam recepcionados.
Certo dia, um grupo de vizinhos, capitaneado pelo padre da igreja
local, resolveram visitar Dona Celina e o marido, durante a ausência
da filha. No começo, uma dificuldade para ver quem falaria. O
padre, bem jeitoso, disse:
- Dona Mirtes, a senhora que ouviu tudo, fala para Dona Celina o
problema que a filha dela está causando à comunidade. Diz para ela
que a igreja está de braços abertos para recebê-la de volta,
desde que se arrependa.
Naquele mesmo momento, como por uma dessas coincidências do
destino, eis que chega Gláucia, com tempo de ouvir as palavras do
velho padre.
- O que o Senhor está dizendo? O que de errado eu tenho para me
arrepender?. Conta Dona Mirtes o que a senhora viu e ouviu. -
vociferou Gláucia.
Dona Mirtes, pálida e trêmula, foi dizendo baixinho mas com
firmeza e determinação:
- A menina aí, sem o menor pudor, na nossa frente e dos seus pais,
disse para um sujeito que iria fazer um novo programa com ele, com
mais cuidado e com um melhor resultado para os dois. De repente, se
arrumou toda, se perfumou e saiu em um carrão com o tal homem. Não
foi Geraldo?.
Fervendo de raiva, aos gritos, Gláucia reviveu todo o seu tempo de
garota irrequieta, moleca e segurou Dona Mirtes pela gola da blusa,
quase a tirando do sofá e foi dizendo:
- O sua bruxa. Eu tenho todo esse luxo porque sou uma profissional
competente. Trabalho em uma software house, ou seja, uma empresa que
produz programas de computadores. Se estou ganhando bem e luxando é
porque sou competente como em tudo que faço. Programa mesmo que eu
faço só de computadores, sua coisa asquerosa. Quanto ao carrão
que saio, é da empresa e o motorista vem me buscar aqui, sempre que
há uma urgência a atender.
- Filha, explica para eles o porquê de tantas ligações e tanto
tempo na Internet. - pediu a sua mãe.
- Quem faz programas e sistemas em computador, tem que dar suporte
constante. Eu me sinto feliz em atender toda a clientela da minha
empresa e por isso estou sempre pronta a responder a todos eles. -
e, complementando, Gláucia disse:
- Sai daqui cambada de abutres. Deixa a minha família em paz. Me
admira muito o senhor Seu Padre estar no meio dessa corja. E o
senhor, Seu Geraldo, vivendo ao lado dessa praga.
Dia seguinte, todos faziam questão de cumprimentar os pais da
jovem. Com isso, eles resolveram até voltar a freqüentar a missa
dominical. Nesse domingo o sermão tinha outro teor, na voz pausada
e arrependida do padre:
- O Senhor nosso Pai nos disse: "Não julgueis para não serdes
julgados". Lembrem-se a postura de Jesus diante da dor pela
qual Madalena passava, quando Ele falou ao povo: "Aquele que
estiver livre do pecado, que atire a primeira pedra".
Instintivamente quase todos os fieis se abaixaram com receio de
serem atingidos pelas suas próprias pedras
Hugo Hereda
2351