Durante todo o inverno ela ficou dentro de casa a maior parte do tempo.
Naquele dia de final de abril, a friagem amenizou e ela sentiu o perfume
forte e estimulante da primavera. Seus ouvidos escutaram o canto
insistente de um passarinho do lado de fora da janela. É como se a
pequena ave a estivesse convidando a sair de casa.
Preparou-se, tomou a bengala e saiu. Voltou o rosto para o sol, deu-lhe um
sorriso de boas-vindas, agradecida pelo seu calor e a promessa do verão.
Caminhando tranqüila pela rua sem saída, escutou a voz da vizinha a lhe
perguntar se não desejava uma carona.
- Não, - respondeu ela - as minhas pernas descansaram o inverno inteiro.
As juntas estão precisando ser lubrificadas e um passeio a pé me fará
bem.
Ao chegar na esquina ela esperou, como era seu costume, que alguém se
aproximasse e permitisse que ela o acompanhasse, quando o sinal ficasse
verde. Os segundos pareceram uma eternidade. E ninguém aparecia.
Nenhuma oferta de ajuda. Ela podia ouvir muito bem o ruído nervoso dos
carros passando com rapidez, como se tivessem que conduzir os seus
ocupantes a algum lugar, muito, muito depressa.
Por um momento se sentiu só, desprotegida. Resolveu cantarolar uma
melodia. Do fundo da memória, recordou-se de uma canção de boas-vindas
à primavera, que havia aprendido na escola quando era criança.
De repente, ela ouviu uma voz masculina forte e bem modulada.
- Você me parece um ser humano muito alegre. Posso ter o prazer de sua
companhia para atravessar a rua?
Ela fez que sim com a cabeça, sorriu e murmurou ao mesmo tempo um
"sim".
Delicadamente, ele segurou o braço dela. Enquanto atravessavam devagar,
conversaram sobre o tempo e como era bom, afinal, estar vivo num dia
daqueles. Como andavam no mesmo passo, era difícil se saber quem era o
guia e quem era o guiado. Mal haviam chegado ao outro lado da rua, ouviram
as buzinas impacientes dos automóveis. Devia ser a mudança de sinal.
Ela se voltou para o cavalheiro, abriu a boca para agradecer pela ajuda e
pela companhia.
Antes que pudesse dizer uma palavra, ele já estava falando:
- Não sei se você percebe como é gratificante encontrar uma pessoa tão
bem disposta para acompanhar um cego como eu, na travessia de uma rua.
Às vezes, quando nos sentimos sós no universo, Deus nos manda uma imagem
semelhante para diminuir nossa sensação de isolamento e disparidade. É
sempre reconfortante conseguir perceber que, sejam quais forem as
dificuldades e limitações que estejamos atravessando, sobre a terra
existem outras tantas dezenas ou centenas de criaturas que, como nós,
passam por situações semelhantes.
Maktub
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