-
Hoje é um dia muito especial para mim, disse um velhinho no parque.
Hoje é o dia em que ela partiu.
Estava no Hyde Park em Londres com uma máquina fotográfica na mão,
tentando encontrar o melhor ângulo para a minha foto de primavera, quando
um velhinho veio conversar comigo. Não estava muito interessado em
conversar com ninguém ou dar corda para papo, mas havia algo naquele
homem. Uma estranha força no olhar e um sorriso incrível que transmitia
tanta paz, que era impossível não lhe dar atenção.
- Sabe, sempre vínhamos aqui. Ela adorava deitar na grama e ler poemas
pra mim.
- Ela não vive mais aqui? perguntei, já sabendo a resposta.
- Hoje faz dois anos que ela foi pro "lado de lá" e desde então,
uma vez por ano eu venho a esse parque, deito na grama e leio poemas para
os passarinhos. Nada mais justo, uma vez que ela fazia com que eu voasse
ao som da sua voz, quando recitava as suas poesias. Quando nos encontramos
não foi amor à primeira vista, pouco a pouco é que fomos notando um no
outro aquela sensação familiar de se sentir em casa ao lado de alguém.
- Algum tempo depois, ela virou minha namorada, minha esposa, minha amiga.
Todos diziam que não duraríamos muito, pois éramos bem diferentes um do
outro, mas fomos além do que os outros pensavam. E toda vez que estávamos
juntos era como se a terra e a água se encontrassem, formando o barro que
era nosso alicerce. Você provavelmente chamaria esse sentimento de amor,
mas nós o chamávamos de "experimentar e compartilhar".
Experimentando, seguimos crescendo e rindo de tudo e de todos,
aproveitando cada segundo dessa brincadeira maravilhosa que é viver. Ela
dizia que a terra era o nosso playground se soubéssemos manter viva a
criança que fomos um dia, em nosso coração.
- Se temia perdê-la um dia? Claro, mas sempre evitei pensar nisso, ainda
mais quando ela ficou doente. Ela lutou até o ultimo sopro de vida, até
que um dia disse que já era hora de parar de ser teimosa e aceitar a
passagem grátis para as estrelas. Ela brincava com tudo, por isso é que
não caí num buraco quando ela partiu.
- A morte veio buscar apenas seu corpo físico, pois o que sentimos um
pelo outro é eterno e eu carrego esse sentimento comigo onde quer que eu
vá. Esse sentimento é que me dá forças e toda vez que a saudade fica
insuportável, eu fecho os olhos e em algum lugar do meu coração, eu
vejo o sorriso dela e não dá para chorar, nem para lamentar. Assim vou
seguindo. Tenho certeza que ela odiaria se eu virasse um chorão e não
sei não, mas eu acho que ela sente tudo o que eu sinto no lugar onde está,
e não quero que ela fique triste, portanto tento sempre sorrir e fazer
algo, sem dar mole para o baixo astral e para a tristeza.
- Às vezes, sonho com ela e toda vez é tão real, que juro que estávamos
realmente juntos. Ela diz que está muito orgulhosa de como eu estou
reagindo. Você acredita nisso, menino?
- Bom, vai ver Deus permite que ela venha me ver enquanto eu durmo, e se
isso for verdade, eu não quero desapontá-la e sei que é só uma questão
de tempo para que estejamos juntos novamente. Até lá, sigo sorrindo,
lendo poemas para os passarinhos e agradecendo a Deus apenas pela
oportunidade de ter sentido o que senti ao seu lado.
- Hoje é um dia muito especial pra mim. É o dia em que ela partiu. E
quando ela se foi, não deixou nenhum vácuo ou espaço vazio, pelo contrário,
ela deixou vida demais no meu peito para eu desistir de viver
Maktub
2043