Amorel e Tratorel
Conta uma antiga lenda que no céu viviam dois anjinhos, Amorel e Tratorel.
Eles eram muito amigos, mas eventualmente esbarravam numa diferença. Amorel
costumava ter um cuidado especial com as palavras para não ferir os outros
anjinhos e mesmo na hora de criticá-los procurava ser doce para que com isso
pudesse ser melhor ouvido e entendido e Tratorel não continha jamais as
palavras dentro de si e saia pelo céu dizendo tudo que lhe vinha à cabeça
sempre de uma forma arrogante.
Acontecia porém uma coisa interessante, Tratorel apesar de não poupar ninguém
de suas palavras lâminas, nem sempre aceitava as dos outros quando lhe diziam
respeito. Já Amorel, estava sempre aberto a ouvir as críticas que lhe
faziam, procurando de alguma forma tirar proveito delas.
Com tudo isso, a vida de Tratorel foi se tornando difícil, meio solitária,
meio amarga e a de Amorel cada vez mais cheia de alegria.
Amigos foram se afastando de Tratorel por se perceberem feridos por suas
bruscas palavras e que muitas vezes chegavam a ser injustas.
Amorel no entanto estava sempre ao seu lado. É bem verdade que muitas vezes
ouvia também essas tais palavras ferinas que iam aos poucos lhe arrancando
pedaços de suas asinhas, que iam escurecendo a sua aura, mas continuava junto
de Tratorel porque o amava muito.
Algumas vezes Amorel tentou lhe dizer certas coisas de forma doce, mas
Tratorel não admitiu ouvir, porque ele só desejava ouvir as coisas que lhe
agradavam.
Um dia, Amorel, como todos os outros anjinhos, se cansou também de Tratorel e
partiu, mas com uma dor imensa no coração, pois ainda o queria bem e
Tratorel a partir daí passou a viver somente acompanhado de anjos de segunda
grandeza, anjos que não possuíam asas, portanto precisavam das suas para
voar, que tinham auras escuras e carregadas, que sugavam a energia positiva e
davam em troca as negativas que possuíam.
Levou algum tempo, mas aos poucos Tratorel começou a perceber o desgaste de
suas asinhas, o colorido de sua aura diminuindo, o brilho dos seus olhos se
apagando; é que as suas palavras e os anjos de segunda grandeza foram sugando
tudo de bom que ele possuía.
Amorel sofria muito ao perceber seu amigo solitário, mas não conseguia mais
se aproximar dele de tão ferido que estava e achou por bem continuar afastado
para não ser contaminado por todas aquelas perdas que estavam acontecendo a
Tratorel.
Um dia, Deus resolveu fazer um passeio pelo céu e surpreso encontrou Tratorel
amuado num cantinho e assustou-se ao perceber que ele não fazia mais parte
nem dos anjos de primeira grandeza , nem dos de segunda e perguntou-lhe:
- Tratorel o que você faz aí tão solitário e triste? Onde estão os seus
amigos?
- Não tenho mais amigos, Senhor!
- E por que?
- Primeiro, porque feri as asinhas dos anjinhos de primeira grandeza e elas
foram se despedaçando aos poucos e depois quando resolvi ser amigo dos
anjinhos de segunda grandeza, achando que só eles me entendiam, em pouco
tempo eles feriram as minhas. Agora não tenho mais como voar, mas o que me
faz sofrer de verdade é ver Amorel todos os dias tentando estancar o
sangramento que causei nele e fazendo um esforço tremendo pra remendar as
asinhas dele que eu quebrei.
Deus então lhe respondeu:
- Tratorel, nem tudo que pensamos pode ser dito, porque nem tudo que se é
pensado está correto e com isso incorremos no risco de sermos injustos em
algum momento. Outra coisa, podemos dizer o que pensamos de forma doce, usar
as palavras como lâminas não fará de nós seres com mais personalidade, fará
apenas sem nenhuma sensibilidade. Acabamos também parecendo aos olhos dos
outros anjos, frios, revoltados, quando muitas vezes nem somos. Quem diz a
todo instante o que pensa, independente dos danos que possa causar em alguém
e seja esse alguém quem for, acaba mais cedo ou mais tarde sozinho como está
você agora.
Os outros anjinhos, sejam eles de primeira ou segunda grandeza,
em algum momento até lhe admirarão pela sua coragem aparente, pela sua
franqueza eminente e você provavelmente revestido de vaidade que estará,
achará que esse é o caminho certo, mas não se iluda, porque todos eles
terminarão como agora, se afastando.
Tratorel enquanto isso derramava lágrimas sofridas, assistido de longe por
Amorel que derramava lágrimas iguais.
Dizem que Deus quando deu ao homem o dom de criar as palavras, foi através
dos anjos Amorel e Tratorel que o fez, mas preveniu-os do seguinte:
- Apresentem aos humanos as palavras e explique-lhes que com elas poderão
formar frases, expressões, construir textos, discursos, mas deverão saber
lidar com elas, caso contrário, elas poderão se transformar em armas e
acabar deflagrando uma guerra, que como todas, será em vão. Somente servirá
para vitimar corações, ferir sentimentos, abalar almas, causar afastamentos
e no fim de tudo, jogar quem as proferiu em eterno estado de melancolia.
Desde então um grupo de seres humanos seguiu a linha de Amorel e outro, a de
Tratorel, portanto uns vivem em paz, outros em guerra.
E ainda se ouve dizer que Amorel ronda pelo céu a catar os caquinhos de suas
asinhas para reconstruí-la, enquanto Tratorel divaga mergulhado na sua solidão.
Silvana Duboc
1899