Fernando e João Carlos, dois amigos inseparáveis, saíam todos os dias
juntos de um grande prédio de escritórios no centro da cidade, e
caminhavam apressadamente rumo à estação rodoviária no final do
quarteirão.
A conversa dos dois, nos últimos tempos, era invariavelmente a mesma:
- Puxa, Nando, a coisa esta feia, tudo dá errado. Você vê... essa promoção
que não sai; Estou devendo à meio mundo; a Júlia engravidou de novo; a
filhinha vive doentinha...
- Ah! João. Eu sei que você anda cheio de problemas. Mas também sei que
você não faz por onde...
- Pronto! Lá vem você com a ladainha de sempre.
- Mas é verdade, amigo. Você não quer saber de Jesus. Como ele irá te
ajudar?
- Ele é que não quer saber de mim. Por isso dá tudo errado comigo.
- Ah! Isso é que não. Jesus nunca nos abandona. Ele está sempre
estendendo sua mão para nós.
- Poxa, depois que você se converteu pra essa religião, ficou impossível.
Igualzinho à Júlia, que vive rezando. Até a filhinha já aderiu; é
Jesus pra lá, Jesus pra cá... Só que não vejo melhora nenhuma...
E assim iam os dois, quando perto da última travessia, avistavam sempre a
figura de um mendigo no seu gesto característico a pedir uma moeda.
Fernando sempre vasculhava o bolso à procura de um 'trocado', que
estendia para o mendigo com um sorriso amoroso. João apertava o passo,
fingindo não vê-lo.
Rapidamente, Fernando emparelhava com João e atacava:
- Veja, quem sabe, não é o Mestre te estendendo a mão e você finge não
ver.
- Ora! Ora! Essa é boa. Jesus. Você pirou mesmo, Fernando. Jesus tá lá
em seu castelo, nem sabe que existo. Por favor, meu amigo.
- Pelo ao menos você deveria dar-lhe um qualquer. Vai te fazer bem.
- Eu é que estou precisando de um qualquer, Fernando. Não estou te
dizendo.
Nesta altura chegavam à estação e cada um embarcava em seu ônibus com
destino a seus lares...
Passado algum tempo...
Naquela sexta-feira, o quadro era diferente:
João estava radiante, feliz.
- Cara, eu não acredito. Finalmente a tão esperada promoção. Agora
sim, as coisas vão melhorar. É quase o dobro do salário, Fernando.
- Parabéns, meu amigo. Também estou feliz por você. Mas, não se esqueça
de agradecer à Jesus, é ele que está te dando este presente.
- Ora! Ora! Hoje não Fernando, por favor. Não estraga meu humor com sermões.
O que tem Jesus com isso? Nem vou à Igreja, você sabe disso. Quem me
promoveu foi o 'chefe', segundo a minha capacidade e merecimento. E ponto
final.
- Tudo bem, amigo. Tudo bem. Mas uma coisa você vai fazer pra comemorar
sua alegria. Dar um trocado ao mendigo!
- Hoje não, Nando. Na segunda, eu prometo. Agora eu vou é correr pra não
perder o ônibus. Não vejo a hora de contar a novidade pra Júlia e pra
minha Belinha.
- Na segunda ele pode não estar mais...
Não teve tempo de completar a frase. João deu 'tchau' e saiu em
disparada. Ele ainda teve tempo de ver o pedinte com a mão estendida no
seu apelo habitual. E engraçado, o pobre homem, que sempre estava
sorridente, naquele momento parecia triste e angustiado. Entretanto, João
Carlos não teve tempo para refletir sobre isto, pois em sua desabalada
carreira, não viu o carro que vinha em alta velocidade.
Foi fatal. João não teve tempo de perceber o que lhe aconteceu.
TRÊS MESES DEPOIS...
- Mas que estranho. Parece que dormi meses. Oh! Jesus. Onde estou?
- Você está numa Estação de Repouso e Refazimento, João. Um Hospital.
- Hospital? Mas, o que houve?
- Você foi atropelado.
- Ah! Sim. Quem é você?
- Seu amigo.
- Nando?
- Não, João. Mas estou aqui porque ele me pediu para tomar conta de você.
- Sei. Mas então, quem é você? Não me parece estranho.
- Olhe bem para mim, João.
- O mendigo???
- Sim.
- Mas o Fernando atravessou a rua comigo. Ele também foi atropelado?
- Não. Ele parou para me dar um trocado. Você saiu em disparada. Estava
com muita pressa.
- A promoção!!! Corri para pegar o ônibus. Tinha pressa de chegar em
casa.
- Se você tivesse parado para me dar uma moeda, não teria perdido o ônibus.
Nem a vida...
- A vida??? Como assim??? Não estou num Hospital?
- Estação de Repouso e Refazimento. Você desencarnou de forma violenta.
Vai ficar aqui um bom tempo.
- Então é verdade! Não morremos! Ué! Então você também morr...
desencarnou?
- Sim. E como já te disse, o Fernando me pediu para tomar conta de você.
- E como está meu bom amigo Nando?
- Desempenhando muito bem a função que seria sua.
- Verdade? Então ele herdou a minha promoção...
- Na verdade a Empresa tinha promovido ele, por merecimento. Mas, ele
declinou aceitar em detrimento a você.
- Meu Deus, que amigo!!! Só não entendo porque ele pediu a um mendigo
para tomar conta de mim.
- Ele, a Júlia e, principalmente, sua 'pequena',
- Oh! Jesus! Minha família!!! Como está minha querida Júlia? Minha 'Belinha'?
O Bebê?
- O bebê já nasceu. Eles estão passando muitas dificuldades. O Fernando
está ajudando. Mas, nada supre a sua falta. A sua pequena chora todos os
dias, e me pede a sua volta.
- Oh! O que fiz, meu Deus. Se eu tivesse seguido o conselho do Nando e
parado...
- Você reparou minha angústia naquele dia? Eu tinha esperança que você,
afinal, atendesse meu apelo.
- É verdade. É verdade. Mas o que faço agora? Gostaria de consertar
tudo isso.
- Você pode.
- Posso??? Como???
- É só repousar bastante e se aplicar nos estudos preparatórios para
uma nova encarnação. E aí você poderá voltar como filho de sua
querida Belinha.
- Verdade?
- Sim. Com uma condição...
- Sim, sim. Qual???
- Na próxima vida, ser meu amigo e me seguir.
- Seguir um mendigo??? Você será mendigo de novo?
- Talvez... E então? Aceita?
- Oh! Estou muito cansado e confuso.
- Tudo bem. Durma mais um pouco. Ficarei aqui velando por você.
MAIS TRÊS MESES SE PASSARAM...
- Mendigo, você ainda está aí?
- Claro João Carlos, enquanto os seus me pedirem, ficarei cuidando de você.
- Obrigado. Qual é o seu nome? Não estou gostando de chama-lo de
mendigo.
- Não me incomodo. E então? Sobre nossa conversa. Tu aceitas?
- Acho que sim. Afinal você parece um bom amigo. Está aí, cuidando de
mim, justo eu que nunca te dei um centavo, nem sequer te dava atenção.
- Pois é, e teu olhar, um sorriso, já teria me bastado.
- Me perdoa. E afinal, qualquer coisa vale para que eu possa retornar ao
seio dos meus queridos.
- Sem dúvida.
- Posso fazer mais uma pergunta?
- Sim.
- Que marcas são essas na sua fronte?
- Foi uma coroa de espinhos que me deram há dois mil anos...
- Então??? Jesus... Me perdoa!!! Eu aceito!!! Eu prometo!!! Me perdoa!!!
E João caiu banhado em lágrimas aos pés do Meigo Rabi, que o levantou,
aninhando-o em seu colo...
E assim, novamente, João Carlos adormeceu...
- Oh, minhas crianças! Como eu gostaria de te-los sempre assim; debaixo
de minhas asinhas.
1849
Maktub