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O primeiro ninguém esquece
Assim informa um certo fabricante desta peça íntima. Eu não posso
dizer se isso é ou não verdade, posto que nunca usei um destes. - Tenho
um primo que usou sim, seu primeiro soutien aos oito anos e nunca mais
esqueceu.
Foi flagrado pela mãe que lhe deu uma boa sova e tornou tal
evento inesquecível. Mas isso é só um pretexto para que eu possa
aduzir uma
outra expressão: o primeiro vôo ninguém esquece.
Foi um vôo curto, 40 minutos. Ponte aérea, São Paulo/Rio de Janeiro.
Mas é bastante pertinente eu informar que meu vôo de 40 minutos começou
20 dias antes do embarque, quando fui notificado que varia o tal vôo.
Tentei argumentar alguma coisa, ir de ônibus ou a pé, mas as normas
eram claras, eu tinha de ir de avião. Na medida em que nunca namorei uma
norma e haviam Normas, aventei a possibilidade de namorar uma delas...
A expectativa foi terrível. Procurei me aconselhar com pessoas mais
versadas na arte de voar e muitas me afirmaram que não havia nenhum
perigo; o momento critico é a decolagem; e a aterrissagem. No mais,
nenhum perigo. Isso me levou a ter a idéia de apanhar o avião em pleno
vôo e abandona-lo antes da aterrissagem.
Fui informado que tal
procedimento é terminantemente proibido pelo Departamento de Aviação
Civil.
O DAC pode ter seus motivos e, sinceramente, não quero saber quais são. O que posso afirmar é que lancei impropérios contra o DAC, mas este não
os ouviu e nem se importou.
Assim, fui obrigado a embarcar em Congonhas. Parti da casa de um
casal de
amigos; a minha querida amiga soube me aconselhar.
Ela disse:
- Cláudio, procure pensar em coisas agradáveis, como Glenn Miller, Ealr
Grant, Mamonas Assassinas etc... É uma grande amiga e excelente
conselheira.
Assim cheguei a Congonhas, com a disposição de quem caminha para o
cadafalso.
Meu vôo partiria as 15:45. Chequei as 13:50. Meu plano era observar bem
o que se passava por ali e encontrar um pretexto qualquer para ir de
bicicleta ou skate, meios de transporte que caminham pelo chão, o amado
e esburacado chão.
Mas a moça do check in, percebendo minha intenção
argumentou com um sorriso de comissária que havia vaga no próximo vôo
e a companhia se sentiria honrada se eu seguisse imediatamente. Não pude
resistir ao sorriso desta moça e nem mesmo ao medo de insultar a
empresa.
Embarquei as 14:20 e o avião ficou lá, paradinho, por dez minutos.
Instruções...
...se houver despressurização....
...lembre se que o assento é flutuante....
...a tripulação esta preparada para qualquer emergência...
Fiquei pensando em quantas emergências poderiam existir em um vôo. Depois de ter encontrado dez mil maneiras diferentes de morrer conclui que estavam mentindo, o avião começou a taxiar (aqui preciso fazer um
comentário, taxiar cabe muito bem a um táxi, não a um avião), lentamente, muito devagar...
...uma eternidade depois ele fez uma curva a esquerda e a voz soou:
- Atenção tripulação, preparar para decolagem.
Era chegada a hora, já não havia mais o que fazer; talvez... sim,
passou pela minha cabeça a idéia de um ataque de histeria com gritos, lágrimas,
súplicas... Mas a minha dignidade mandou que eu ficasse em silencio.
O avião anda mais um pouco, metros... de repente ele acelera. Quando
digo acelera quero dizer acelera ... meu corpo foi pressionado contra o
encosto, eu olhava pela janela e via as coisas passando rápido, mas não
me parecia rápido o bastante.
Eu olhava pela janela e via a asa do avião.
De repente ficou para traz o chão. Para traz e para baixo, muito
rapidamente eu vi pessoas encolhendo, carros encolhendo, prédios
encolhendo e, subitamente, reduziu-se o ruído dos motores.
Eu não sabia, não tinha sido informado que a decolagem se daria em três
etapas (esta lacuna nas instruções quase pôs fim a minha vida, pois
meu coração veio à minha garganta; engoli-o a seco.
A visão dos prédios, muito próximos, fazia de tudo aquilo um inferno.
Outro impulso. Mais forte, mais alto, os prédios eram, agora, minúsculas
caixinhas cujo conteúdo devia ser gente, a saudosa gente da metrópole
que mantinha seus pés sabiamente apoiados no solo...
Outra vez o avião
se demorou, um ruído menor, tudo me dizia que aquela maquina infernal
tinha problemas e que estes problemas decretariam o meu fim; mas ele
tomou novo impulso e galgou os céus de maneira imponente...
Inútil dizer que eu olhava pela janela procurando reconhecer alguma
coisa, talvez aquela rua onde eu e X fizemos coisas malucas de madrugada
e por muito pouco não fomos flagrados pela policia; talvez o Pacaembu,
qualquer coisa!!! Mas não reconhecia nada...
Rapidamente a cidade ficou para traz, a terra ficou para traz, o oceano
era visível...
Tudo estava tão alto que eu amaldiçoei a hora em que aceitei voar;
jurei por todos os santos e todas as santas que voltaria de ônibus. Ao
diabo com as normas, até porque eu não vi nenhuma Norma. Se ela estava
lá não se dignou a aparecer.
Não sei porque, relaxei. Acho que a beleza da paisagem foi ocupando o
lugar do medo; vales, montanhas, tudo visto de cima. Ai tive uma grande
desilusão. Não havia uma cidade sobre as nuvens.
Quando eu era criança, perguntava a minha avó o que ficava em cima das
nuvens; ela me contava que tinha uma cidade imensa, feita todinha de
algodão doce... Isso me fazia planejar um assalto a esta cidade. Foi
isso que me levou a subir em arvores, casas, escadas e tudo o que pudesse
me aproximar um pouquinho das nuvens...
Não foram poucas as vezes que caí.
E descobri, naquele momento, que minha vó estava enganada. Cresci, mas
nunca abandonei a tese de minha avó, minha querida Palmira, havia em mim
a esperança de uma cidade de algodão doce bem acima de minha cabeça e
este vinha sendo a razão de toda a minha existência: estabelecer um
plano que me fizesse chegar a tal cidade, que eu devoraria
implacavelmente...
Com estes raciocínios e a necessidade de justificar minha avó, que não
tinha mentido, apenas se equivocara, passei o resto da viagem.
Agora eu via o mar, a plataforma continental que acabava rapidamente,
mergulhando num abismo de proporções desconhecidas. O mar era azul
turquesa, com manchas marrons e de vez em quando aparecia mais uma nuvem
mentirosa (cheguei até mesmo a pensar que algum outro menino tivesse
chegado lá antes de mim), que atrapalhava a visão mas desaparecia
rapidamente. Notei que estávamos descendo.
Medo. Lá na minha frente, ou pouco à direita, a Ponte Rio-Niterói;
perto dela, uma quadra de tênis que descobri, mas tarde, ser o Santos
Dummont...
Passamos por sobre a ponte e fizemos uma imensa curva a direita e o
comandante disse, solene:
- Atenção tripulação, preparar para aterrissagem.
O mar sob nós se aproximava rapidamente, muito rápido, e não havia
noticias sobre terra.
Será um hidro avião?
Não me lembro de ter visto bóias... os assentos flutuam... mas isso não
me parece uma boa alternativa.
Lembrei me que já disse muitas vezes que gostaria de morrer vendo o mar.
Estava vendo o mar. Ele era azul escuro agora, porque estava próximo,
muito próximo e cada vez mais próximo, nenhuma noticia da terra, apenas
mar, muito mar, molhado, azul, imenso, volátil e próximo...
Morrer vendo o mar... bastante poético; e não sou poeta. Aliás, não
sou nada. Meu desejo se realizaria em bem pouco tempo e isso não me
agradava... Estava triste. Porque a terra não aparecia?
O mar agora poderia ser pego com uma caneca. Pensei em pedir uma à
comissária para tomar um gole desta água que me engoliria em minutos,
uma espécie de vingança; achei que não daria tempo.
Não daria mesmo.
Rapidamente, quase invisível, uma faixa marrom. Terra!,
Listas quadriculadas, talvez amarelo, em seguida, asfalto.
Pista!
Um toque suave no solo. Freio acionados, os flaps se erguem, a velocidade
é alucinante, o freio é acionado intensamente. As rodas gemeram sob o
peso da aeronave, que balançou e vibrou em cada molécula. A velocidade
caiu drasticamente.
Estava tudo tranqüilo. Eu estava de volta ao solo.
O comandante disse alguma coisa, não sei o que foi...
Creio que não poderei esquecer este dia.
Nem quero esquece-lo...
A vida é mesmo composta de emoções e se eu esquecer as emoções esqueço
a vida; esquecendo a vida, estarei morto. E quero muito viver....
Tenha um bom dia...
1671
Maktub
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