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A Caridade
Terminara, finalmente, o insigne poeta o seu árduo trabalho:
grandioso poema sobre as maravilhas de Deus na ordem do cosmos.
E agora, numa roda de amigos e admiradores, declamava o mais
belo capítulo da obra prima do seu engenho. Foi um assombro total!
De tamanha beleza eram as idéias, tão profundos os
conceitos, tão cintilantes as frases, tão suaves as cadências dos períodos,
que os ouvintes ficaram como que extáticos de enlevo.
E quando o poeta, no auge do entusiasmo, declamava a mais
grandiosa página do poema, ouviu-se bater à porta da casa.
Mais se avolumou a voz do inspirado poeta, mais vibrante se
tornou o seu estro, para abafar o ruído do inoportuno visitante.
Persistem, porém, na porta, os golpes indiscretos.
Interrompe então o cantor das grandezas de Deus a faiscante cadeia de idéias
e, contrariado, com um arranco violento, abre a porta.
"Por gentileza, senhor, a sua roupa suja" diz uma
vozinha tímida, coando dos lábios pálidos duma menina magríssima. É a filha
da pobre lavadeira. "Agora não posso, menina! Venha amanhã!"
"Mas a mamãe vai ficar sem serviço, e sem pão, somos
tão pobres. Por favor senhor, a sua roupa suja"
"Não posso, já disse!"
Com estrondo infernal se fecha a porta na cara da pálida
menina. E, tornando a subir ao estrado, retoma o trovador o fio do poema. Por
entre tempestades de aplausos termina a declaração da grande apoteose que
elaborou pela maior glória de Deus.
Felicitações, abraços, sorrisos, elogios e luminosas
perspectivas.
Altas horas da noite...
Surge no seio das trevas o rosto pálido duma menina paupérrima.
Corre pelo quarto olhares sonâmbulos, apanha da mesa os originais do poema,
folha por folha e as rasga em mil pedaços. E jogando-as ao cesto de papéis
murmura: "Roupa suja, senhor". E desaparece.
O poeta acorda, os originais lá estão,
intatos. E põe-se a
pensar, a pensar, a pensar. É verdade que escrevi este poema pela maior glória
de Deus? Se é verdade, porque não cantei, ontem à noite, o mais belo de todos
os poemas do mundo, o poema da Caridade? Por que não entreguei à probrezinha a
minha roupa suja? Por que preferi à caridade a minha vaidade?
Levantou-se e resolveu, logo de manhã, entregar à filha da
lavadeira a roupa suja que ela pedira, e lavou com as lágrimas do
arrependimento a "roupa suja" que tinha dentro da alma. E o seu coração
cantou em silêncio o mais lindo poema de humanidade.
O divino poema de Jesus de Nazaré!!
1472
Maktub |
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